domingo, 6 de fevereiro de 2011

Material interessante sobre a língua portuguesa!

Para além do Português
Elisa Marconi e Francisco Bicudo
A reflexão a respeito das potencialidades e dos poderes relacionados à linguagem verbal que ainda hoje é intensamente desenvolvida por linguistas é também bastante antiga e deu alguns de seus primeiros passos com o pensamento hindu (nos séculos II e IV A.C.) e grego (também no século II A.C.). O mergulho na questão faz sentido. Segundos grandes estudiosos do tema, como o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) – tido como o fundador da ciência da linguística –, o alemão Edward Sapir (1884-1939), o norte-americano Benjamin Lee Whorf (1897-1941) e o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), a fala, a língua e a linguagem verbal de cada povo tangenciam as culturas locais, dialogam com a percepção de fenômenos e acabam por ajudar a definir a própria visão de mundo de cada comunidade.
Aqui no Brasil é comum definir como uma das façanhas principais da Língua Portuguesa o fato de ter auxiliado na tarefa de manter o país unido e coeso durante o período das independências das colônias americanas, no século XIX – o que não se efetivou com a América Espanhola, que acabou por se fragmentar, por distintas razões. Segundo essa perspectiva, como a população majoritariamente falava Português (mesmo que de forma autoritária e imposta), tornou-se possível garantir a unidade das regiões e a transformação delas em uma grande nação, do ponto de vista territorial. Mas é fundamental lembrar que esse país continental e aparentemente de uma língua só não fala apenas Português.
210 línguas faladas no Brasil
Segundo o Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística, criado em 2006 e liderado pelo Ministério da Cultura e envolvendo ainda os ministérios da Educação, Justiça, Ciência e Tecnologia e Planejamento, além de ser composto por representantes da sociedade civil, são 210 as línguas faladas aqui. Isso mesmo: no Brasil, são faladas 210 línguas. Em sua maioria, são usadas por povos indígenas; uma parcela menor delas está presente nos costumes e rituais de descendentes dos escravos africanos e de imigrantes europeus e asiáticos que chegaram ao país nos séculos XIX e XX.
Em dezembro último, os trabalhos desenvolvidos pela equipe ganharam um reforço precioso, o Decreto 7387, que, dentre outras medidas, institui o Inventário Nacional da Diversidade Linguística. Na prática, o mapeamento das comunidades e de suas tradições culturais segue como já vem acontecendo há quatro anos, mas agora a busca de informações e as ações de preservação das línguas ganham respaldo institucional e poderão ser ampliadas e até se transformar em políticas públicas de acolhimento dessas línguas, dos falantes delas e das culturas e tradições por elas representadas.
A diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Márcia SantAnna, explica que a meta do inventário é conhecer da forma mais ampla possível as línguas faladas por comunidades de brasileiros há, pelo menos, três gerações. “Será, portanto, uma fotografia de toda essa diversidade formada por brasileiros índios, descendentes de africanos e de europeus”, conta. Conhecer as 209 outras línguas, seus falantes e as situações em que são usadas (em casa, em rituais, nas escolas locais) é, segundo Márcia, uma maneira de entender quem são os brasileiros, que diversidade cultural é essa e que país é esse que pode abrigar tantas línguas e culturas. “Porque cada comunidade que usa cada uma dessas línguas tem sua visão de mundo específica. Quando o Estado se prontifica a preservar essas línguas, pode também proteger essas culturas que fazem parte do Brasil”.
Se outras línguas são faladas aqui, não é difícil vislumbrar que acontecem trocas e intercâmbios entre o Português e elas e entre a cultura que cada um dos códigos carrega. Por isso é que outro objetivo estabelecido pelo Inventário Nacional de Diversidade Linguística é que não haja prejuízo no ensino e na propagação da Língua Portuguesa nessas comunidades, ao mesmo tempo em que as línguas singulares de cada um desses agrupamentos também sejam respeitadas e contempladas com mecanismos de preservação de fato. O desafio, admita-se, não é simples. “A ideia é que essas comunidades possam não só dominar o Português, que é a nossa língua comum, mas também manter suas línguas de origem, ou que utilizam no seu cotidiano, principalmente no âmbito familiar”, defende a diretora.
Diversidade cultural
A postura brasileira de abrigar as outras línguas e seus falantes vai ao encontro da demanda mundial de promover a diversidade cultural. Nesse ponto a atuação certeira do Ministério da Educação será fundamental. Algumas escolas de comunidades indígenas já têm garantido o ensino bilíngue, ora usando português, ora a língua de origem da aldeia. A implementação do Inventário vai permitir, de acordo com Márcia Sant’Anna, “a ampliação dessa educação diferenciada nas áreas em que a diversidade linguística acontece com mais intensidade, não apenas nas comunidades indígenas”. É importante lembrar que a Constituição de 1988 já previa a educação diferenciada e a inclusão de línguas indígenas no currículo educacional, quando se fizesse necessário, mas não deixou claro o que fazer em relação aos outros códigos.
A diretora acredita que à medida que os dados colhidos pelo Inventário forem se tornando públicos, vai ficar mais claro que a demanda pela oficialização de outras línguas em determinadas comunidades é maior do que se imaginava. Alguns grupos de descendentes de alemães e italianos que vivem no Sul do país, por exemplo, já pedem a inclusão de suas línguas de origem nas escolas há algum tempo. O mesmo acontece com grupos negros quilombolas.
Os mais puristas poderão então questionar: será que o fortalecimento de outras línguas dentro de território nacional não representaria uma ameaça à Língua Portuguesa ou mesmo àquela ideia de que apenas o Português nos une? “Durante muito tempo o país passou para si essa imagem de que só falamos uma língua. E, sim, o Português é importantíssimo e por isso tem de ser muito bem cuidado também, inclusive seu ensino nas escolas”, afirma a diretora. “Agora, não representa nenhum perigo para o Português contemplar a diversidade, essas línguas que ainda são faladas nos seios das famílias e que ainda transmitem tradições culturais que vão além da unificação promovida pelo Português”.
Rico material para estudos acadêmicos
Antes mesmo do Decreto de dezembro, o levantamento trabalhou com oito projetos-pilotos que, para a diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, foram bem sucedidos nos objetivos de testar a metodologia do inventário, os custos de aplicação e, principalmente, “medir as consequências de animar as comunidades a preservar suas línguas. E elas acabam se envolvendo mesmo com o inventário. O trabalho vem sendo também uma oportunidade preciosa para recolher materiais para estudos acadêmicos”, conta. A expectativa é que a organização dos ministérios em torno do projeto e o repasse dos recursos garantidos pelo Decreto para o Inventário possibilitem colocar em prática, efetivamente, ações para a preservação das línguas indígenas, de escravos e de imigrantes faladas aqui no país. Já está prevista a produção de dicionários, gramáticas e livros de literatura e até – dependendo dos resultados – a possibilidade de co-oficialização de línguas faladas por comunidades mais numerosas, como já acontece em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, região Norte do país, onde se fala oficialmente, além de português, dialetos como o Baniwa e o Tukano.
Ao final do levantamento, que ainda não tem data certa para acontecer, as línguas inventariadas vão ganhar o título de “Referência Cultural Brasileira”, uma categoria que merece não só o reconhecimento como peça chave na cultura brasileira, como também se torna referência para ações públicas para a preservação da fala, da escrita e das manifestações, materiais ou não, derivadas de cada uma dessas línguas, assim como já acontece com o bom e velho Português.

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